Você acha Hugh Hefner Ruim? Ele fez um funcionário negro se sentar com um nazista

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Era o começo dos Anos 60, o movimento dos Direitos Civis ainda engatinhava em boa parte dos EUA, no Sul principalmente a rejeição era imensa e segregação racial era algo real e legal. Negros e Brancos eram separados sempre que possível, de bebedouros a bares, e isso gerou um problema para Hugh Hefner.

 O criador da Playboy era meio ingênuo, por isso topou abrir uma franquia dos Clubes Playboy em New Orleans, e isso voltou para morder sua mão. Os clubes eram locais exclusivos onde os sócios usavam suas chaves especiais e assistiam a shows, concertos, bebiam, networkavam e eram servidos por coelhinhas altamente treinadas, inclusive proibidas de manter qualquer contato inapropriado com os clientes. Hefner mandava detetives para tentar seduzir as coelhinhas de vez em quando e garantir que andavam na linha. Clientes abusados eram expulsos, mas o problema era outro.

 Clientes de outros Estados estavam chegando no Clube Playboy da cidade e sendo barrados, com o argumento de que eram… negros. Hefner tentou argumentar, os donos mostraram que eram legalmente autorizados a segregar o estabelecimento. Sem opção, Hugh Hefner puxou o talão de cheque e comprou o clube de volta. Imediatamente o acesso passou a ser liberado para todos os sócios.


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Até o Clube Playboy fica melhor com coelhinhas japinhas.

 Que qualquer Clube Playboy nos Anos 60 aceitasse negros hoje soa como surpresa, mas na época era algo que qualquer um familiarizado com Hugh Hefner acharia natural. Ele era um sujeito completamente fora da curva, hoje é hostilizado como sexista, machista porco esTRUpador, bla bla bla, mas o verdadeiro Hugh Hefner e a Playboy foram fundamentais para os movimentos sociais nos anos 60/70.

 Hefner era um caso raro na época, uma mentalidade avançada nas questões sociais E CEO de uma empresa bem-sucedida. Ironicamente ele perdeu dinheiro com isso. O público em sua maioria não gostava de mensagens progressistas, e consequentemente os anunciantes também não. E por mensagem progressista eu digo reconhecer que EXISTEM pessoas “diferentes”.  Por isso o grande Nat King Cole foi demitido da NBC, não havia anunciantes.
 Isso não impediu Hugh Hefner de bancar seus dois programas, Playboy’s Penthouse e Playboy After Dark, vendidos para emissoras de todo o país, com exceção de várias estações do Sul, que se recusavam a divulgar aquele absurdo, e por absurdo em digo um programa que mostrava festas no que seria a cobertura de Hefner, onde convidados negros e brancos se divertiam, e até dançavam juntos, interracialmente. Brrr…


 Para piorar era comum a presença de atrações negras, como Gregory Hynes, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughn, Marvin Gaye e muitos outros. Inclusive gente que não era preta ou branca, mas da pior cor possível: vermelha. Artistas na Lista Negra do Senador McCarthy eram rotineiramente convidados. Ronald Reagan chegou a mandar uma carta pedindo que Hefner parasse de chamar esses indesejáveis, como o comediante Lenny Bruce. Hefner chegou a ser preso por levar Bruce no programa.


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Sarah Vaughn no Clube Playboy de Chicago.


 Hugh-Hefner-and-Ella-Fitzgerald.jpgHugh Hefner e Ella Fitzgerald

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Marvin Gaye no Clube Playboy

 Hefner sabia que irritava alguns consumidores, mas no fundo isso servia como filtro para manter longe dos clubes e da revista gente que não se alinhava com os ideais da revista, gente que se incomodava com isto:

Comentários

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    Coelhinhas negras sempre foram contratadas para trabalhar nos clubes, as aí de cima são de Chicago. E a disputa era imensa, era ótimo negócio ser coelhinha, o salário era bom, o ambiente de trabalho era quase militar em sua organização. Sharon Peyton foi coelhinha em um dos clubes, e conta que lá aprendeu tudo sobre organização e qualidade de serviço, conhecimentos que aproveitou quando abriu seu próprio nightclub tempos depois.


     Além das coelhinhas visíveis, a Playboy também era conhecida por empregar um número fora do normal de mulheres, em uma época onde o normal era um ambiente Mad Men, e não eram empregadas só como secretárias. Hefner não tinha problemas em colocar mulheres em postos de alta responsabilidade, inclusive esta senhora aqui:


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    Ela se chama Zelda Wynn Valdes, designer e estilista, responsável por uma das imagens icônicas da cultura pop, a fantasia de coelhinha usada pelas playmates e recepcionistas dos Clubes Playboy.


     Na revista Hefner tentava aplicar sua visão inclusiva, dentro dos limites do real, pois senão a Playboy fecharia. O público não estava preparado para um choque cultural, mesmo assim a primeira Playmate negra apareceu em 1965. Para dar uma idéia de como isso foi ousado socialmente, a Sports Illustrated só foi ter uma negra na capa, a Tyra Banks, em 1994.


     Mesmo nos textos Hefner ousava. Entre os números 2 e 4 da revista publicaram Farenheit 451, de Ray Bradbury. Matérias sobre direitos civis, racismo, liberdade de expressão eram rotineiramente publicadas. Em 1955 a revista publicou um conto de ficção científica rejeitado pela Esquire por ser polêmico demais, “The Crooked Man,” de Charles Beaumont.


     Na história uma sociedade onde a norma era todos os homens sendo gays excluía e perseguia héteros, que se encontravam em clubes secretos e viviam à margem da sociedade. Um monte de leitores escreveu reclamando. Ao contrário das empresas bananas de hoje em dia Hefner não pediu desculpas. Publicou uma nota defendendo o conto e dizendo que se parecia tão errado assim perseguir héteros, talvez fosse errado fazer o mesmo com gays.


     A Fundação Playboy, criada em 1965 foi pioneira em bancar custas de processos envolvendo aborto e uso de anticoncepcionais, que eram proibidos em alguns Estados. Certa vez Hefner recebeu uma carta de um Disc Jockey cumprindo uma pena de 12 anos de prisão. Motivo: Antes de um show um fã praticou fella felacc pagou um boquete, foram flagrados e enquadrados em Leis contra Sodomia.


     Sim, hoje em dia a gente dá verba federal de pesquisa pra quem quiser chupar pirocas em banheiros públicos, mas nos Anos 50 era cadeia, sem dó. Hefner não concordava, colocou a Fundação Playboy em cima e conseguiu que o sujeito fosse solto, e as Leis anti-sodomia acabaram caindo.


     A posição progressista da Playboy fica evidente já na primeira entrevista, em 1962: Miles Davis. Hefner amava Jazz, amava talento e não tinha tempo pra se preocupar com a cor do tal talento. Isso desencadeou uma série de entrevistas que se tornaria lendária. A piada de que se comprava Playboy por causa das entrevistas era, no fundo, verdadeira.


     E não eram entrevistas chapa-branca com artistas da moda. Em 1963 foram entrevistados pela Playboy Malcom X e Jimmy Hoffa, e na edição de Dezembro, Albert Schweitzer, o cientista.
  • Muitas dessas entrevistas foram feitas por Alex Haley, que mais tarde produziria clássicos como o livro e depois série Raízes. Haley fez a primeira entrevista da Playboy, com Miles Davis, conseguiu a maior entrevista que Martin Luther King, jr deu a qualquer veículo e sozinho elevou o padrão do jornalismo “entrevistativo”.


     Um de seus momentos mais tensos foi quando entrevistou para a Playboy  George Lincoln Rockwell, líder do partido nazista americano. O sujeito deu a entrevista com uma arma em cima da mesa, mas isso não intimidou Alex, veterano da Segunda Guerra Mundial. Ele já começou chutando a porta:


     
    “Eu já fui chamado de nigger antes, desta vez estou sendo bem pago pra isso, então vá em frente e diga por quê nos odeia.”
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    Alex Haley

     A Playboy é sinônimo de revista de mulher pelada, mas essa é uma visão simplista. Quando ela foi criada sexo era basicamente proibido, algo feito entre quatro paredes, digno de vergonha. Hugh Hefner trouxe o erotismo para a luz, apresentava mulheres com nome e sobrenome e uma incrível predileção por longos passeios na praia. A preocupação com o prazer feminino era constante nos artigos, o homem bem-sucedido era o que sabia agradar. A Revolução Sexual deve muito à Playboy, pois de nada adianta mulheres liberadas se os homens continuam trogloditas.

     Quanto a Hugh Hefner, que faleceu ontem aos 91 anos, ele fez muita coisa errada na vida, mas também muita coisa certa. Ele tinha um DC-9, o Big Bunny:

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    Ele era usado primariamente para consumir coelhinhas, mas com o desastre do final da Guerra do Vietnã os EUA começaram a Operação Babylift, transportando milhares de órfãos recém-nascidos para os EUA. Hugh Hefner disponibilizou o avião, que fez parte do esforço conjunto. Pelo menos duas gerações estão vivas por causa dele.

     A Internet está cheia de ódio gratuito contra Hugh Hefner, e espero sinceramente nunca descer tanto em uma espiral de desumanidade que eu fale isso de um senhor de 91 anos:

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    A Playboy conseguiu glamourizar e tornar invejável a mulher que posava nua, algo que mesmo hoje é visto meio de lado. O título de playmate era ostentado com orgulho, isso é o oposto de objetificação. Isso é humanização, e nem vou entrar na parte em que a Playboy publicou ensaios com modelos transsexuais.


     A postura progressista da revista era às vezes controversa mesmo internamente. Em 1987 publicaram um ensaio com Ellen Stohl, uma modelo paraplégica. Isso gerou uma briga imensa na redação, vários editores, muitos deles mulheres, foram contra, achando que pareceria um show de bizarrices. A decisão final foi de Hugh Hefner.

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    A própria Ellen Stohl relembra:


     
    “Hef foi inflexível , eu tinha o mesmo direito de expressar minha voz sexual quanto mulheres sem deficiências”


    Hugh Hefner é facilmente odiado e invejado, mas assim como sua revista, há muito mais do que o conteúdo superficial, é só uma questão de saber e gostar de ler. Agora ele nos deixou, e eu temo por seu destino. Se sua alma pesar mais que uma pena, ele achará as festas no Inferno coisa de amadores, e se for pro céu morrerá de novo, de tédio.


     A mim só resta agradecer. Por ensinar gerações a idéia de sexualidade saudável e positiva, por ensinar que mulheres bonitas podem e devem ser apreciadas mas se você não as tratar com respeito você é um merda, por toda uma vida defendendo direitos civis e avanços sociais mas principalmente, obrigado Senhor Hefner por uma certa capinha em Dezembro de 1987.

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    https://contraditorium.com/2017/09/28/voce-acha-hugh-hefner-ruim-ele-fez-um-funcionario-negro-se-sentar-um-nazista/
  • editado September 2017
    Hefner foi bem mais do que o ricaço caricato do pijama de seda

    A 'Playboy' nasceu com propósitos capazes de desafiar a intolerância que vicejava na América pós- macarthismo

    POR NIRLANDO BEIRÃO, ESPECIAL PARA O GLOBO 29/09/2017

    Hugh Hefner foi bem mais do que a personalidade caricata em que se converteu, na maturidade, com o invariável pijama de seda, a piscina da mansão de Los Angeles e a corbeille de coelhinhas que sempre emoldurava suas fotos.

    Editor de coragem quando nem todos conseguiam ser, nos ambíguos anos 1950, virou um magnata aposentado de descompromissada lassidão, incapaz de perceber a metamorfose do ofício, dos costumes e do mundo.

    Confundiram-se inteiramente, a marca e o criador, e quem se beneficiou disso foi a própria “Playboy”, que nasceu com propósitos capazes de desafiar a intolerância — política, sexual, racial, religiosa — que vicejava na América logo após a era macarthista.

    Com US$ 500 e a mãozinha de amigos artistas e escritores, Hefner saiu a campo para inaugurar a categoria “revista masculina” e, de cara, mostrou que tinha talento para a coisa. Chegaram-lhe às mãos as fotos de uma insinuante loira que, ainda que novata em uma única figuração no cinema, era tida como uma futura bombshell de Hollywood.

    Hefner adorou as fotos e morreu com 1/10 de todo o orçamento. Quando a revista foi enfim lançada, a novata Norma Jean tinha virado Marilyn Monroe.
             
    Levou algum tempo, digamos, uma década, para que “Playboy” e seu editor incorressem na ira das feministas. De início, as mulheres, em grande parte, até que absolveram a revista, convencidas — como reiteravam os editoriais de Hefner — de que a exposição do corpo feminino em grande estilo, com esmerada produção, não tinha nada de imoral e que, dedicada aos homens, “Playboy” poderia ter a virtude de educá-los e refiná-los, pelo bem das parceiras.

    Só dos anos 1960 em diante é que o nu de “Playboy” passou a ser considerado não um avanço civilizatório e, sim, um atraso machista e mercantilista.

    Estranha acusação, aliás, para uma publicação que, ao enfrentar o establishment da América, teve de praticamente se recolher à clandestinidade, ao nascer.

    Mesmo na sua Chicago natal, “Playboy” não chegava a atingir todas as bancas, dominadas por mafiosos italianos de muita fé em Deus e devoção a San Gennaro.

    O Serviço Postal recusou-se a despachar a revista pelo país afora, enquadrando-a na categoria “pornografia”. Foi aí que se estabeleceu a inesperada relação entre a “Playboy” de Hefner e o Partido Comunista dos Estados Unidos: a revista passou a ser distribuída pelos mesmo caminhões que transportavam, por baixo do pano, “The Daily Worker”, o jornal do Partidão americano.

    Uma vez perguntaram a Gay Talese, autor de “A mulher do próximo”, quem faz mais até hoje pela liberdade sexual nessa América puritana. Antes que alguém mencionasse Marilyn Monroe ou os travessos irmãos Kennedy, Talese decretou: Hugh Hefner.

    Nirlando Beirão trabalhou na “Playboy” brasileira em três encarnações diferentes, nos anos 1980 e 90, sempre como editor
    https://oglobo.globo.com/cultura/artigo-hefner-foi-bem-mais-do-que-ricaco-caricato-do-pijama-de-seda-1-21885656#ixzz4u4Ev0DvB
  • Análise: Hugh Hefner fez parte da construção do homem heterossexual brasileiro

    Com suas estrelas nacionais desnudadas, 'Playboy' mobilizou geração que entrou na adolescência até o começo dos anos 2000
     
    POR SILVIO ESSINGER 28/09/2017

    Teve sua graça esse negócio de “revista de mulher pelada” para quem entrou da adolescência até mais ou menos o começo dos anos 2000. Afinal, a dificuldade em vislumbrar um nu feminino — com as variantes de nitidez, exposição dos pontos-chave, beleza e duração dos vislumbre — era bem palpável, e obrigou as almas perdidas que não tiveram as facilidades da internet a recorrer a diversos expedientes para satisfazer a curiosidade/desejo/necessidade/vontade. Mas não adiantava: fossem livros de ciência, filmes etnográficos, catálogos de lingerie, o mamilo na pornochanchada tarde da noite ou a eventual espiadela pelo buraco da fechadura, nada disso se comparava, em termos de frenesi, ao corpo de mulher que se oferecia no pôster central da revista “Playboy”.

    O legado de Hugh Hefner, criador da revista, para a construção da identidade do heterossexual brasileiro se espalhou por milhares, quem sabe milhões de quilômetros quadrados de paredes de borracharias, garagens e quartos de adolescentes. A cada mês, os editores da revista especulavam qual seria o objeto de desejo da população masculina — uma atriz, modelo, cantora, atleta, dançarina, apresentadora de TV, socialite ou subcelebridade (que já existiam) — e engendravam as conversas para que a escolhida se desnudasse. Se bem negociado, o cachê era um dinheiro que dava para comprar bons apartamentos. Aí, faziam-se as fotos em algum lugar paradisíaco ou chique, em poses de bom gosto (com alguma provocação, claro, afinal a imaginação requer subsídios), pedia-se um texto meio poético a algum amigo/especialista (homem, geralmente), e era só esperar pelo sucesso nas bancas de revistas.

    Para os menores de idade, o lançamento de uma “Playboy” desejada implicava em desafios, que iam desde a organização de vaquinhas entre os interessados até a votação para quem ia usar da lábia (e cara de pau) com o jornaleiro. E, depois, a turma que se organizasse para levar a revista para casa primeiro, escondida entre os cadernos escolares. Havia, porém, aqueles cujos pais assinavam a revista, e se orgulhavam que seus meninos as folheassem com avidez — desde que não na frente da mãe e das irmãs (e assim o patriarcado se perpetuava no Brasil). Para muitos, a opção estava nos sebos, onde era sempre possível encontrar quilos de “Playboy”, cotadas de acordo com o impacto, positivo ou negativo, que os ensaios das estrelas de capa tiveram (e assim Maitês, Lumas, Tiazinhas e Feiticeiras se perpetuaram no imaginário).

    Das mudanças nos padrões e procedimentos de beleza do Brasil, a “Playboy” foi um fundamental termômetro. Em suas páginas, viu-se passar dos vastos matagais ao bigodinho de Hitler, da preferência nacional sem retoques às estranhas catedrais calipígias erguidas à custa de malhação e dos seios pequenos e sinceros aos balões de silicone empinados. Capa após capa, a revista organizou o mapa do desejo masculino de cada época.

    Mas, com o crescimento da internet, aos poucos a pornografia, sempre farta e sem sutilezas, passou como enxurrada pelo mercado do sexo. E as décadas de objetificação da mulher cobraram seu preço à sociedade. Agora, com a morte de Hugh Hefner, chora-se bem mais que a partida de um pioneiro, mas o fim da ilusão de inocência que o olhar da moça do pôster central passava aos seus púberes apaixonados.
    https://oglobo.globo.com/cultura/analise-hugh-hefner-fez-parte-da-construcao-do-homem-heterossexual-brasileiro-21884291#ixzz4u4GThPYU
  • O REI DAS COELHINHAS

    "O Globo"   29-09-2017

    Criador da ‘Playboy’, que será enterrado ao lado de Marilyn Monroe, encarnou o ‘bon vivant’ cercado de mulheres, símbolo de um tempo que morreu antes dele

    “Bem, se não tivéssemos os irmãos Wright, ainda assim haveria aviões. Se não houvesse um Edison, ainda haveria luz elétrica. E, se não houvesse um Hefner, ainda teríamos o sexo. Mas talvez não gostássemos tanto dele. Então, o mundo seria um pouco mais pobre”, gabou-se ele próprio, em 1974, em uma entrevista à sua própria revista.

    Homem pacato, que nasceu em 1926 numa família metodista, se casou com a namorada de colégio e foi trabalhar no setor de pessoal de uma fábrica de caixas de papelão, Hefner transformou-se aos poucos na figura que todos conheceriam: em 1953, resolveu investir numa revista, feita em sua casa, em que pudesse publicar seus próprios desenhos e um punhado de fotos de Marilyn Monroe, nua, feitas em 1949, quando ela ainda buscava a fama. As imagens, ele tinha comprado do fotógrafo por US$ 500.

    Com Marilyn no pôster central, o primeiro número de “Playboy” — revista que traria os sonhos eróticos do homem americano para o mainstream — teve sua primeira tiragem, de 51 mil exemplares, rapidamente esgotada. Em poucos anos, Hugh viraria um milionário: “Playboy” atingiria um lucro anual de US$ 4 milhões e se espalharia pelo mundo. A edição brasileira saiu em 1975, com o nome “A revista do homem” e seios cobertos por efeitos, para não trombar com a Censura.
    Só viraria “Playboy” em julho de 1978. Foi uma das mais bem-sucedidas do planeta.

    O casamento do empresário acabou indo para o espaço em 1959. No mesmo ano, ele reapareceria transformado na TV, no programa “Playboy’s Penthouse”: cachimbo na boca, em sua mansão, recebendo celebridades para entrevistas (algumas delas, negras, o que, em época da segregação na América, lhe valeu a perda de alguns patrocinadores). Nascia o Hugh Hefner propagador de um novo estilo de vida para o homem: de pijama de seda cercado de coelhinhas — belas mulheres em trajes sumários — que namorava e com quem às vezes se casava. “Como eu poderia
    saber (com quantas mulheres dormi)?”, perguntou-se, em entrevista à revista “Esquire”, em 2013. “Mais de mil, com certeza”.

    A primeira reação feminista ao lifestyle de Hugh Hefner e à “Playboy” veio em 2013, quando a escritora Gloria Steinem se empregou no Playboy Club do empresário e depois escreveu uma reportagem para a revista “Snow” denunciando as excessivas horas de trabalho, os uniformes apertados (que expunham seios) e a vulgaridade dos clientes. Em 1986, Hefner se defendeu, na revista “Newsweek”: “Sou feminista, mas estamos falando línguas diferentes. As feministas veem os impulsos sexuais como expressões de poder político e social. Existe alguma verdade nisso. Mas atrás dessa visão há a noção de que a tendência humana de querer fazer amor está tão cheia de raiva e hostilidade que está intimamente relacionada com o estupro... Isso é bobagem.” Não colou.

    Com a mudança de costumes, a revista passaria a ser acusada de objetificar a mulher — mesmo que sob uma capa de elegância. Muito antes, os leitores que iam mensalmente às bancas de olho nas coelhinhas também se encantavam com o restante da publicação. No Brasil, ela foi uma das principais revistas do mercado e a mais bem-sucedida operação fora dos Estados Unidos, não só pela qualidade dos ensaios fotográficos, mas também pelas entrevistas, reportagens e matérias de serviço.

    A equipe trazia Luis Fernando Verissimo, Juca Kfouri, Ruy Castro, Luiz Schwarcz, entre outros.
    — Ela era como um time de futebol com craques de ponta a ponta. Lembro de reuniões com Ruy, Walter Clark, Kfouri. Era uma revista com gente que sabia pensar — diz J.R. Duran, que fotografou por cerca de 30 anos para a publicação.
    Duran lembra que, nos tempos áureos da revista, os fotógrafos tinham total liberdade para realizar os ensaios:
    — Era quase um cheque em branco. Falávamos “vamos fotografar na Grécia” e íamos. Mas era preciso corresponder a essa confiança, se superar, surpreender a cada capa. Perdi noites sem dormir por conta dos ensaios.

    Retratada mais de uma vez na revista, a ex-modelo Monique Evans conta que já era bem famosa quando decidiu posar.
    — Fiz porque achei os ensaios bonitos. Eles não mostravam tudo. São fotos que as revistas de moda fazem hoje — diz ela, acrescentando que a objetificação da mulher vai além da “Playboy”. — Não importa se você está nua ou de minissaia, infelizmente ainda existe isso. Você pode fazer um ensaio nua e seu comportamento ser tão legal que parece que você está vestida. Era isso que eu tentava fazer. Eu fazia com naturalidade, parecia meio índia. Já a minha filha (Bárbara Evans) fez um nu que era de uma pureza incrível.

    Diretor da “Playboy” brasileira no início da década de 1990, o jornalista Juca Kfouri conta que não chegou a conhecer Hugh Hefner, já que, em cada país, as redações tinham autonomia. Contudo, ele cita um episódio ocorrido logo que assumiu a revista. Ao receber uma reportagem sobre sexo grupal, ele estranhou a ausência de qualquer referência a preservativos.
    — Chamei o redator e falei: “vocês estão malucos?”. Aí ele me explicou havia três coisas proibidas na “Playboy”: anúncio de armas, propaganda de remédio contra calvície e associar prazer e morte. Por isso, não se falava de preservativo. Subi aos meus superiores e disse que jamais publicaria matéria de sexo sem menção a camisinha — diz o jornalista.


    Na época, o mundo vivia a epidemia da Aids. Diante da posição de Juca, Roberto Civita, dono do Grupo Abril, que publicava a revista — depois vendida e relançada pelo grupo PBB Entertainment — contactou Hefner, que abriu uma exceção.
    — Aí, a Conceição Lemes, grande repórter, fez uma matéria sobre Aids, que acabou premiada na Organização Mundial de Saúde. A partir desse episódio, o Hefner acabou com a proibição.

    Autor de fotos também históricas, Luís Crispino lembra que o material produzido no Brasil vendia muito no exterior.
    — Eles achavam que nossos ensaios tinham cara mais natural, em relação à luz, às locações. Os ensaios americanos, mesmo em locação, tinham luz artificial, parecia de estúdio. A gente ia a lugares paradisíacos, praias maravilhosas, e isso virou uma marca, que nos destacou no exterior.

    Para Crispino, o fato de a publicação ter ajudado a naturalizar a fotografia de nu acabou contribuindo para sua posterior queda de circulação, junto à internet:
    — A “Playboy” ajudou a integrar o nu às publicações brasileiras e, de certa forma, o desmistificou. Hoje vemos revistas de moda supersofisticadas com ensaios de modelos nuas. No outro extremo, a internet trouxe a pornografia mais baixa, hoje praticamente acessível a todos. A “Playboy” ficou num limbo.
    A revista nascida nos EUA, à imagem e semelhança de seu fundador, se manteve, mas foi perdendo espaço no mundo com a concorrência da internet e a mudança de costumes e visões sobre a mulher.

    Hugh Hefner viveu até 91 anos e morreu anteontem, de causas naturais, em sua mansão em Los Angeles. Deixa uma era para trás, quatro filhos e a mulher, Crystal Harris, 31. Será enterrado no cemitério Westwood Village, ao lado de Marilyn Monroe, estrela de sua primeira capa.
  • Quando Mário Gonçalves, o trapalhão Zacarias, faleceu, Dedé Santana deu a notícia no programa seguinte e concluiu:
    _ E agora, para substituir Zacarias, nós chamamos... NINGUÉM.
    De onde eu tirei isso, fazia-se o questionamento sobre substituições. Afinal, pessoas são substituíveis? Quem substituiu Beethowen? Quem substituiu Einstein? Quem substituiu Yul Brynner? Não, minha gente. Essas pessoas, todas as pessoas, são únicas. Não tem substitutos para elas. Cada qual faz o que tem de fazer do seu jeito. Umas são pé firme como o falecido dono da Playboy e outros são bola murcha como os que se assustaram em eleger a Mulher Maravilha como símbolo do empoderamento feminino.
    Parece que a filha do cara assume a direção da revista. Espero que se espelhe nele. O mundo é outro agora, mas a bandeira que a Playboy deve agitar é a luta contra o politicamente correto.
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